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Ela Wiecko diz ao Supremo que MP da leniência é inconstitucional

Procuradora-geral da República em exercício dá parecer pela procedência de Ação Direta de Inconstitucionalidade da Medida Provisória que alija Ministério Público de negociações com empresas; leia a íntegra do parecer de 39 páginas

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Por Fausto Macedo , Mateus Coutinho e Julia Affonso
Atualização:

A procuradora da República Ela Wiecko. Foto: Divulgação/STF

A procuradora-geral da República em exercício Ela Wiecko adverte que a Medida Provisória 703/15, que trata de acordos de leniência, é inconstitucional.

Em parecer de 39 páginas, Ela Wiecko pede ao Supremo Tribunal Federal concessão de medida cautelar para suspender a eficácia da MP 703/15, de 18 de dezembro de 2015. O parecer será analisado pela minisitra Rosa Weber, relatora da ação no STF.

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"É indispensável que a contribuição da pessoa jurídica colaboradora propicie elementos inéditos para o Estado, ainda não descobertos, não apenas para o órgão celebrante, que pode obter a prova com os outros órgãos por empréstimo ou cooperação e não por leniência", destaca a procuradora.

"Admitir que uma empresa receba benefícios em acordo de leniência em troca de informações de que o Estado já disponha gera radical incoerência no sistema e permite que o investigado subverta a ordem das coisas, em seu exclusivo benefício."

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Ela Wiecko sustenta. "Imagine-se, por exemplo, que o Ministério Público Federal, em busca e apreensão, encontre documentos que esclareçam cabalmente certos fatos, sendo desnecessário firmar acordo (pois as provas já são suficientes). A empresa, para redução de danos, procura a Controladoria-Geral da União (CGU) e resolve celebrar acordo, apresentando como colaboração prova de que a CGU não dispõe, mas que o Estado, por meio do MPF, já tem em seu poder. Nenhum benefício para o interesse público resultaria desse acordo. A exclusiva beneficiada seria a empresa. A medida provisória não poderia permitir tal gênero de iniquidade."

A procuradora-geral em exercício é taxativa. "Não cabe admitir atenuação das sanções e do regime da Lei 12.846/2013 por considerações de ordem macroeconômica. Um dos principais compromissos internacionais do Brasil no campo do combate à corrupção é a Convenção da OCDE contra a Corrupção.Seu artigo 5.º é expresso em vedar omissão de ação dos Estados-partes por esse motivo."

Para Ela Wiecko a Medida Provisória 703 'caminha na contramão da experiência internacional, que preconiza aplicação de sanções efetivas, proporcionais e dissuasórias ('effective, proportionate and dissuasive sanctions') em função das lesões, notadamente em caso de atos de corrupção,de maneira que agride os princípios constitucionais da finalidade e da eficiência'.

"O artigo 16, caput, na redação da medida provisória, permite que União, Estados, o Distrito Federal e municípios, por meio de seus órgãos de controle interno, de forma isolada ou com o Ministério Público ou a advocacia pública, celebrem acordo de leniência", assinala a procuradora. "A competência excessivamente ampla para celebração dos acordos, com reflexos potenciais sobre ações de improbidade e todos os benefícios do artigo 16, § 2 o , da lei alterada pela Medida Provisória, debilita fortemente o princípio da responsabilidade, deturpa a finalidade do instituto da leniência e fere a eficiência da administração pública na prevenção e repressão de atos ilícitos."

Ela Wiecko destaca que o Brasil possui mais de 5.500 municípios, além dos 26 Estados e do Distrito Federal. "Com a permissão dada pela medida provisória, todos esses entes federados, por meio de seus numerosos órgãos de controle interno, poderiam celebrar acordo de leniência, ocasionalmente envolvendo, por exemplo, recursos federais que são amplamente transferidos pela União em áreas cruciais como saúde e educação, nas quais há crônico histórico de desvios e déficit de fiscalização."

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A procuradora adverte. "Os frequentes ilícitos com recursos públicos (não só desvios, mas malversações, malbaratamento etc.) passariam a estar sujeitos a acordos de leniência firmados por órgãos submetidos a governantes - não raro responsáveis pelos próprios ilícitos -, sem necessidade de revisão interna nem acompanhamento do Ministério Público. No caso dessas multibilionárias verbas federais, é indispensável a participação de órgãos federais, particularmente o Ministério Público Federal, na celebração dos acordos de leniência, a fim de que não haja transação em torno de bens federais por parte de outros entes da federação, o que seria claramente contrário ao princípio federativo (artigo 1.º , caput, da Constituição)."

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Para Ela Wiecko, 'em investigações, sobretudo as complexas, com possibilidade de emprego de instrumentos como a colaboração premiada (regida pela Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013), é fundamental a participação do Ministério Público nos acordos de leniência, a fim de que possa aquilatar os efeitos globais do acordo sobre a responsabilidade de pessoas físicas e jurídicas, para além da esfera administrativa'.

"Apenas o Ministério Público pode ter visão de conjunto dos fatos, por conhecer as investigações criminais, naturalmente mais amplas e com possibilidade de conterem elementos até então sigilosos", diz Ela. "Os órgãos de controle interno e externo não têm condição de realizar tal avaliação, devido a seu raio de ação mais restrito do que o do Ministério Público, que deve atuar tanto no campo cível (por ações civis públicas e ações por improbidade administrativa, para defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa) quanto no criminal. Não podem a Advocacia-Geral da União e a Controladoria-Geral da União, por exemplo, avaliar se determinada proposta de acordo de leniência contempla todos os elementos em poder do Ministério Público Federal e se traz informações inéditas e relevantes para esclarecimento dos fatos, devido à impossibilidade de acesso desses órgãos do Executivo a elementos sigilosos contidos em investigações criminais."

A procuradora faz um alerta. "A possibilidade de acordos de leniência sem participação nem fiscalização do Ministério Público é contraproducente para a própria finalidade da Medida Provisória 703/2015. Se o Ministério Público constatar ilicitude em um desses acordos, decerto tomará medidas para invalidá-los. Essa possibilidade gera insegurança jurídica para as próprias empresas potencialmente interessadas, pois os benefícios acordados poderiam vir a ser suspensos ou cassados e seus dirigentes poderiam ser acusados criminalmente, a depender das circunstâncias. Essa, por sinal, é talvez uma das causas para não ter havido, até agora, nenhum acordo de leniência firmado com base na medida provisória. As empresas potencialmente interessadas percebem que o modelo da medida provisória é intrinsecamente precário e inseguro, ao alijar o Ministério Público das negociações."

"O modelo de acordo de leniência fixado pela medida provisória, pulverizado quanto aos órgãos autorizados a celebrá-lo e sem parâmetros e condições apropriadas fixadas na lei, sem adequados mecanismos de supervisão e sem participação necessária do Ministério Público, permite lesão aos valores da função social da propriedade e da livre concorrência", afirma a procuradora.

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No parecer, Ela Wiecko ressalta que a MP 703, além de não conter fundamentação mínima de urgência, não atende ao requisito formal inerente à provisoriedade da medida. "Portanto, a norma é formalmente inconstitucional porque fere os princípios constitucionais da finalidade e da eficiência da ação estatal, ao desfigurar na essência o instituto dos acordos de leniência."

Ao analisar o mérito, a procuradora afirma que a MP revogou a restrição prevista na Lei 12.846/2013, que permitia o acordo apenas com a primeira pessoa jurídica que nele manifestasse interesse. "Não se pode tratar a leniência como instituto de alcance geral, cujas vantagens potenciais possam vir a ser consideradas como variáveis no cálculo de riscos e bônus dos negócios das pessoas jurídicas."

Para Ela Wiecko, se qualquer pessoa, física ou jurídica, a qualquer momento, puder celebrar acordo de leniência, 'não haverá incentivo a que se rompam os vínculos de silêncio e conivência que caracterizam, em grande medida, os ilícitos cometidos contra a administração pública envolvendo pessoas jurídicas (como nos casos de cartelização e fraude em concorrências, conluio em licitações e com agentes públicos etc.)'.

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