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Discriminação e preconceito no curso superior

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Por Denise Rampazzo 
Atualização:
Denise Rampazzo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Discriminar é o ato de segregar ou de não aceitar uma pessoa ou um grupo de pessoas por suas características pessoais: cor da pele, orientação sexual, gênero e idade; ou sociais: credo religioso, trabalho, convicção política etc. Juridicamente, é o ato contrário ao princípio de igualdade.Pessoas sofrem discriminação diariamente no País. São maltratadas ou estigmatizadas por serem negras, mulheres, nordestinas, soro positivos, gays, viverem com deficiências diversas, entre outras.

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No Brasil, temos avançado jurídica e socialmente na garantia de direitos equânimes a todas as pessoas, ainda que alguns direitos não sejam usufruídos por todos. É cada vez mais incomum presenciarmos discursos que defendem de forma explícita a superioridade de um grupo socialmente constituído sobre outro. Sinal dos tempos.

Apesar das diferenças sociais gritantes, o mecanismo de autocensura tem sido eficaz, ao menos no que se diz em público.Apesar das políticas públicas de garantia de direitos - cada vez mais robustas - procurarem garantir tratamento digno e justo a todos, ainda há muito a ser feito.

Discriminação e preconceito são construções sociais que estão introjetadas nas pessoas sem que, muitas vezes, as próprias pessoas percebam. O professor Kabengele Munanga, da USP, discute a questão do preconceito que se manifesta por discursos e atitudes de tal maneira naturalizados que o preconceituoso não se vê como tal. Discursos recorrentes como "não tenho preconceito, até tenho amigos gays, negros ou nordestinos" servem de argumento a comentários discriminatórios.

O assunto é complexo e não se pode pretender julgar se a pessoa é preconceituosa de maneira consciente ou não. Muitas vezes, a pessoa sequer é capaz de perceber que sua fala e atitudes são resultado de uma construção social preconceituosa e discriminatória.

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As sanções têm sido impostas pela sociedade. Atualmente, um grande número de pessoas tem pensado melhor sobre que frases ou expressões utilizar, por exemplo. Ainda que no mundo virtual os discursos de ódio estejam presentes, pessoalmente, eles têm sido menos comuns. Esse ato em si, é um avanço, mas não significa que estas pessoas superaram o preconceito com relação a determinados grupos sociais.

A democratização em diversos ambientes, como nos cursos superiores, grandes empresas e repartições públicas, estimulada pela política de cotas e por uma mudança no perfil dos contratantes, estabeleceu novos tipos de interação que há poucos anos não existia.

Acompanhamos, nesta semana, com um misto de tristeza e decepção, a denúncia feita pelo Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) contra um professor da Universidade de Brasília (UnB) suspeito de discriminar uma aluna deficiente visual do curso de Engenharia Química. A aluna, portadora de retinose pigmentar, doença genética que compromete a visão de modo progressivo, já havia sido alvo de discurso preconceituoso por parte do professor em 2016, o que levou 11 alunos a fazerem uma denúncia à ouvidoria da instituição.

Nesse ano, o departamento de engenharia e a direção da faculdade solicitaram adaptações nas aulas do professor para que a aluna tivesse seus direitos de aprendizagem garantidos. O professor não fez as adaptações e persistiu nos comentários em sala de aula que, claramente, discriminavam a aluna. O professor, inclusive, informou aos alunos que as adaptações solicitadas iriam atrasar o curso e que todos seriam prejudicados pela necessidade da estudante.

Segundo a denúncia, e conforme relatos de alunos, o professor chegou a afirmar em sala de aula que "pessoas que não possuem inteligência visual devem ser portadores de deficiência grave". Relacionar inteligência à deficiência visual ultrapassa qualquer desconhecimento sobre o desenvolvimento das capacidades cognitivas. Em outra ocasião, o professor afirmou que "o engenheiro que não consegue visualizar as coisas não é um bom profissional", mais uma vez, desconsiderando a possibilidade de um deficiente visual realizar atividades relativas à Engenharia Química.

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Imagino que então deveríamos perguntar ao professor em questão, que tipo de profissional pode se tornar a pessoa com deficiência visual? Já que não deve cursar Engenharia Química, deveria, então, ficar em casa? Os bancos das universidades estariam reservados apenas aqueles que não têm nenhuma deficiência? Sem querer fazer associações irresponsáveis, esse tipo de discurso amedronta e considero que precisa ser reprimido de maneira exemplar. Para o referido professor, Engenharia Química e deficiência visual não são compatíveis. Quais seriam as exigências pressupostas, para além das cognitivas avaliadas no processo seletivo para ingresso, para um estudante desta área?

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Discriminação está relacionada ao preconceito que está vinculado à ideia de superioridade. Ainda que não se reconheça, o preconceituoso contra algum grupo social considera este grupo inferior ao grupo de pertencimento. Em uma instituição pública este tipo de comportamento ganha características ainda mais gritantes, pois por serem instituições mantidas pelo Estado, deve ser o guardião dos direitos de todos os cidadãos brasileiros, a despeito da opinião de seus funcionários, ainda que este tipo de atitude seja inaceitável também em instituições privadas.

A história da educação brasileira nos dá pistas do motivo deste tipo de discurso acontecer onde não deveria. Os bancos do ensino superior foram destinados aos membros da elite durante muito tempo e apenas após a Constituição de 1988 é que transformações efetivas iniciaram as necessárias mudanças no quadro da educação brasileira. A implementação de políticas públicas como o FUNDEB, a LDB, os Planos Nacionais de Educação, o Programa Nacional do Livro Didático, entre outras, cujo princípio norteador é a garantia dos direitos de aprendizagem, têm possibilitado o acesso à educação de camadas da população que durante muito tempo estiveram à margem deste processo. Avançamos universalizando os anos iniciais do ensino fundamental e garantindo acesso aos cursos superiores de pessoas que foram os primeiros de suas famílias a chegar a este patamar de formação. Entretanto, marcas do antigo mundo ainda permanecem, como o professor denunciado e membros da gestão da universidade, que, reunidos em comissão, consideraram que não houve assédio moral, com isso afirmam que não estão discriminando ou sendo preconceituosos com a aluna, que abandonou a disciplina.

A legislação, as campanhas na mídia, as sanções sociais que modificam discursos, a militância dos grupos organizados e as denúncias cada vez mais frequentes ajudam, mas a verdadeira transformação passa por um âmbito íntimo e pessoal.

Só seremos capazes de construir uma sociedade verdadeiramente democrática e garantidora de direitos iguais para todos os seus cidadãos, independente de crença, cor da pele, gênero, orientação sexual, origem ou condição física quando cada cidadão tiver a coragem de enfrentar-se diante de um espelho e identificar quais os grupos sociais que considera piores do que o grupo ao qual pertence. Este momento é revelador! Feito isso, caberá decidir se queremos ou não ser pessoas melhores e mais humanas.

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Por isso, a instituição escolar, em todos os segmentos, precisa engajar-se nesta luta. O exercício individual pode começar com cada profissional da área de educação que poderá formar crianças e jovens mais solidários, promovendo uma reflexão crítica a respeito dos aspectos que nos humanizam.

Infelizmente, poucas instituições de ensino superior incluem em seus currículos de formação de professores disciplinas que trabalham com questões relativas à inclusão e à diversidade. Nas instituições onde os desafios foram encarados de frente, como na que trabalho, há avanços significativos.

Professores precisam ser formados para promover relações respeitosas e garantir os direitos a todos os alunos e isso só é possível quando este profissional conscientiza-se da importância do seu papel na formação de outras pessoas e supera os seus próprios preconceitos, isso precisa fazer parte da formação de professores.

O trabalho é árduo, mas é um caminho para a construção de um país mais justo e democrático no qual todos poderão ter seus direitos de aprendizagem e de cidadania garantidos.

*Mestre em Educação pela Faculdade de Educação/USP. Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela FFLCH/USP e professora do Instituto Singularidades, SP

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