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Direitos humanos no Brasil: realidade ou discurso partidário?

Por Mara Gabrilli
Atualização:
Mara Gabrilli. Foto: Arquivo Pessoal

'Os direitos humanos só servem para defender bandido'.  Se tem uma frase que bem define o pensamento equivocado a respeito do tema é esta. Vivi na pele tal distorção quando em uma das diversas vistorias de acessibilidade que fiz ao Presídio da Papuda, fui criticada por denunciar a violação dos direitos humanos de presos com deficiência.

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Na ocasião, conheci a realidade de detentos cadeirantes que não tinham acesso a medicamentos, ao trabalho como alternativa para redução de pena ou a realização de provas como o ENEM. Lembro-me de um tetraplégico que dormia no chão em meio a ratos que passavam por cima dele. Por conta da falta de movimentos, ele tinha escaras por todo o corpo. Sua cadeira de rodas havia sido quebrada para virar arma na mão de outros presos. Entre as já precárias condições de todas as celas do complexo, aqueles detentos se encontravam à margem de qualquer coisa que lembrasse humanidade.

Nessas horas vejo o quanto o Estado é omisso em cumprir com seus deveres, tornando-se o responsável por alimentar na sociedade um olhar que desumaniza o individuo e fortalece a intolerância entre as diferenças. Isto transcende a massa carcerária. Atinge diretamente as ditas minorias: pessoas com deficiência, comunidade LGBT, mulheres, negros, indígenas.

Não precisamos ir muito longe para entender o quanto essa minoria, que na verdade é gigante, fica à margem de seus direitos humanos pela total falta de compromisso e intimidade do Poder Público no que tange o tema. A própria Reforma da Previdência, cujo slogan é "acabar com privilégios", tentou subtrair o pouco do brasileiro com deficiência, quando o Governo apresentou um texto que desvinculava o salário mínimo à concessão do BPC. Uma medida que além de ameaçar a dignidade das pessoas com deficiência e dos idosos, desconstruía direitos já estabelecidos pelo próprio Estatuto do Idoso. Um verdadeiro retrocesso em termos de direitos humanos.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um direito já garantido por lei há décadas e é direcionado às pessoas com deficiência e idosas que vivem à margem do básico. Trata-se de um salário mínimo pago àqueles que não possuem meios de prover sua subsistência.

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O critério para que se receba tal benefício é indigno: a renda mensal por pessoa não pode ultrapassar a ¼ do salário mínimo. Algo que há tempos venho tentando mudar, mas sem sucesso por parte também de governos anteriores, que por muito tempo camuflou sua irresponsabilidade por um dano causado pelo próprio Estado - vide o surto de microcefalia causada pela epidemia do zika vírus e a omissão escancarada do governo pseudo igualitário da então presidente Dilma Rousseff, que nada fez para garantir às mães e famílias atingidas um mínimo de suporte para sobreviver. Ficaram apenas slogans publicitários de uma nação igualitária, mas na prática nada fora feito.

Pergunto-me, hoje, onde estão os direitos humanos dessas crianças que nasceram em meio a um cenário desalentador, sem oferta de reabilitação e saúde.  O Estado nunca tomou providências concretas e efetivas para erradicar o mosquito Aedes Aegypt. São as famílias, em especial as mais vulneráveis, que hoje arcam com essa irresponsabilidade. Uma parte delas sequer conta com um miserável amparo do Governo. Ou seja, os direitos humanos não estão defendendo presos, menos ainda os 'livres'.

Para se ter uma ideia, segundo definição da própria Organização das Nações Unidas, "os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição".  Então se você é a favor do direito à saúde e educação, por exemplo, você também é a favor dos direitos humanos.

Na prática, no entanto, somos infinitamente pobres quanto ao cumprimento dessas garantias - ainda que as mais básicas.

O glaucoma e a catarata, doenças que poderiam ser facilmente evitadas, são as principais causas de cegueira na população brasileira adulta. Já na infância, estes problemas são decorrentes de baixa nutrição e infecções.

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Parece-me discrepante que o país onde foi sediada uma Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos ainda tenha problemas semelhantes aos países de mais baixo IDH do mundo, como a falta de saneamento básico e a fome. Nossas crianças estão desmaiando nas escolas por não ter o que comer. Estão nascendo já sem perspectivas de futuro. A paralisia cerebral, por exemplo, que virou doença de pobre no Brasil, é dez vezes mais comum em recém-nascidos prematuros e é uma deficiência que poderia ser evitada em 40 % dos casos com a oferta do atendimento adequado e de qualidade em todos os períodos de gestação da mulher.

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Em 2006, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou por unanimidade entre os 192 países membros, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O documento, com peso de norma constitucional, foi ratificado pelo Brasil em 2008, estabelecendo uma série de direitos e reconhecendo a necessidade de se criar acessos plenos às pessoas com deficiência.

Trata-se do primeiro documento de direitos humanos do século 21 e que concebeu um conceito revolucionário: o de que a deficiência não está nas pessoas, mas sim na resposta inacessível do meio às diferentes necessidades humanas.

O texto da Convenção foi regulamentado pela Lei Brasileira de Inclusão, que foi relatada por mim na Câmara em construção com vários grupos da sociedade civil. A LBI já está em vigor em todo o Brasil e cabe agora ao governo regulamentar essa legislação e fazer com que de fato esses direitos sejam garantidos a uma nação que há muitas décadas vem sendo negligenciada de todos os direitos, a começar pelo o mais básico: o humano.

*Mara Gabrilli,deputada federal pelo PSDB/SP, publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora também por São Paulo. Atualmente, exerce seu segundo mandato na Câmara dos Deputados. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes.

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