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Direito fundamental à Liberdade de Reunião

O direito fundamental à liberdade de reunião (art. 5º, XVI da Constituição Federal) é bidimensional, como são, em geral, todos os direitos fundamentais de liberdade. Em uma primeira dimensão, encontra-se seu teor de liberdade, de direito subjetivo: o direito de cada brasileiro ou estrangeiro residente no país de se manifestar, coletivamente, com um propósito comum aos manifestantes, denotando muitas das vezes, mas não necessariamente, um escopo político.

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Por Leonardo Martins
Atualização:

Em sua segunda dimensão, que podemos chamar de objetiva, está o papel instrumental do exercício dessa liberdade para o processo democrático. Trata-se, nesse sentido, de uma espécie de comunicação aos representantes das demandas políticas dos representados. Por alguns é considerado até mesmo um instrumento de democracia deliberativa.

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De fato, a relevância do exercício mais amplo possível da liberdade de reunião, que no Brasil vem experimentando perceptível florescimento desde junho de 2013 - o que só pode ser saudado por qualquer defensor do Estado constitucional democrático de direito - não está em questão.

Seu reconhecimento faz parte daquelas obviedades que, se discutidas, faz recair sobre o proponente, no mínimo, certa suspeita de não suficiente deferência à Constituição e à sua força normativa. A liberdade de reunião tutelada por direito fundamental faz parte do rol de direitos dos mais vulneráveis porque potencialmente hostis a governantes de plantão. Contudo, dialeticamente, discutir em termos abstratos sua relevância para a democracia não a torna mais forte.

Como direito fundamental, a liberdade de reunião é parâmetro para a avaliação da compatibilidade normativo-vertical de quaisquer atos estatais: normativos, executivos e judiciais. Tanto regras abstratas que a tangenciem (de uma PEC a uma resolução ou portaria de órgão da Administração Pública), quanto suas respectivas interpretações e aplicações pelo Executivo e, precipuamente, pelo Judiciário - enfim, todos os atos emanados dos poderes constituídos - têm de observar as medidas que decorrem da norma em tela, promulgada pelo poder constituinte em 5 de outubro de 1988. É desse estatuto que se deriva sua supremacia dentro do Estado constitucional, não de sua relevância material sujeitável aos mais variados juízos de valor e políticos.

Esclarecida essa questão da irrelevância da axiologia (e de seus sucedâneos teóricos) como método jurídico-hermenêutico, é claro que, no momento de serem resolvidos os desafios que a realidade do exercício da liberdade de reunião nos impõe, não basta avocar a supremacia normativa da liberdade.

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Inobstante, o sistema configurado pelo constituinte para a aplicação dos direitos fundamentais constitui-se, também, de um complexo subsistema de limites a direitos fundamentais. Mas a aplicação de tais limites não pode ser destituída de critério jurídico-científico. Caso contrário, contornar-se-ia o vínculo do legislador aos direitos fundamentais. Em outras palavras: ao compatibilizar o exercício de liberdades conflitantes, inclusive com o bem jurídico-constitucional da capacidade funcional de órgãos estatais, tais como os órgãos de segurança policial, o legislador ordinário está obrigado a extrair do sistema normativo constitucional não apenas suas conhecidas balizas formais. Também os limites materiais de sua discricionariedade, decorrentes da outorga do direito fundamental, têm de ser observados.

O art. 5º, XVI da CF é dotado apenas aparentemente do que os juristas chamam de "(suficiente) densidade normativa". Em termos singelos, estaria presente tal densidade normativa nas hipóteses em que o teor da norma bastasse para sua aplicação. Concessivamente, admite-se que o teor da norma em tela é menos abstrato do que de outras normas jusfundamentais. Com efeito, parece ser o caso tomando-se, como exemplo, apenas duas das locuções do dispositivo: "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas" e "sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". No mais, haveria, segundo alguns, quando não uma vedação, ao menos a dispensa de regulamentação do direito em pauta por força do §1º do mesmo art. 5º, segundo o qual: "as normas definidoras de direito fundamental têm aplicação imediata".

Contudo, se é correto que não haja uma obrigatoriedade de interposição legislativa para o exercício do direito, é incorreto derivar do dispositivo uma vedação de qualquer lei interveniente ou configuradora de conteúdo da liberdade. Só uma leitura superficial do §1°, que ignore, entre outros, o aludido sistema de limites, certifica essa tese. Ou o que decorreria da locução "sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente", se não um limite estatuído pelo próprio poder constituinte à liberdade de reunião? A quem deveria ser confiado, no Estado Constitucional democrático de direito, o traçado concreto de tal limite? Quem deveria resolver questões como: a quem, quando e como se deve previamente avisar? Quem seria essa autoridade "competente"? Qual seria o procedimento; quais os prazos e recursos inerentes a tal dever de prévio aviso? Quais seriam as consequências do não cumprimento desse dever? Autoridade "competente" seriam os órgãos executivos e de segurança, necessariamente agindo sempre ad hoc? Ou seria o Estado-juiz sem critérios predefinidos?

Independentemente de haver ou não um mandado legislativo implicitamente previsto no art. 5º, XVI, como, entretanto, compatibilizar, na ausência de lei regulamentadora, as imprescindíveis medidas executivas e judiciais com o princípio constitucional da legalidade dos art. 5º, II e 34, caput da CF? Como compatibilizá-las com o vínculo de todos os poderes, mas precipuamente do Executivo e Judiciário, ao direito fundamental?

O resultado de eventual processo legislativo deveria, obviamente, ser submetido ao exame de constitucionalidade, podendo, em tese, ser declarado - todo ele ou parte dele - inconstitucional e nulo.

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Isso pressuporia que o STF verificasse, com método jurídico-constitucional, a incompatibilidade formal e/ou material com o art. 5º, XVI, e, destarte, fundamentasse sua decisão (caso contrário seria o caso de aplicação do bom e velho princípio favor legis). Também sua interpretação e aplicação por órgãos dos demais poderes deveria se dar - aliás, sempre - à luz da liberdade de reunião atingida, podendo ser, em qualquer tempo, revisada e anulada. Essa permanente possibilidade de controle resolve a questão da constitucionalidade da eventual lei.

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Por sua vez, a conveniência parece ser óbvia: a lei traria tanto para os manifestantes, quanto para as forças policiais de segurança e para a comunidade em geral mais certeza e segurança jurídicas. Assim, contribuiria para diminuir tensões, ataques ideológicos e instrumentalizações da liberdade para os mais variados fins, inclusive de marketing político. Este que, com certeza, não estava nos planos do constituinte ao assegurar o direito fundamental à liberdade de reunião.

*Professor de Direito Constitucional do PGD e do PPGD-UFRN; autor de diversas obras jurídicas pela Editora GEN-Atlas e líder do Grupo de Pesquisa "Constituição Federal e sua Concretização pela Justiça Constitucional - CFCJ" (PPGD-UFRN).

** Esse tema será objeto do Congresso "Liberdade de Reunião e seus limites Constitucionais no contexto da democracia militante: alicerces legais para uma regulamentação constitucionalmente compatível do direito fundamental às manifestações coletivas", a ser realizado na próxima quarta-feira, a partir das 18h30, na sede da Associação dos Advogados de São Paulo - AASP, à Rua Álvares Penteado, 151 - Centro - São Paulo; tel.: 3291-9200. Inscrições gratuitas com direito a certificado de participação para estudantes de direito (últimas vagas) podem ser feitas online pelo site da AASP: http://cursos.aasp.org.br/detalhecurso.aspx?id_aceite=581007&id_curso=23242.

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