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Dinheiro, política e direitos fundamentais: a necessária reserva de 30% do fundo eleitoral para candidaturas femininas

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Por Meire Lúcia Gomes Monteiro Mota Coelho e Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro
Atualização:
Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro e Meire Lúcia Gomes Monteiro Mota Coelho. Fotos: Arquivo Pessoal Foto: Estadão

O Tribunal Superior Eleitoral deve julgar na sessão de hoje tema de relevantíssima importância para o futuro da representação feminina na política brasileira. Trata-se de Consulta 060025218, formulada por ilustres mulheres congressistas, sob o patrocínio da advogada Luciana Lóssio, primeira mulher a integrar a composição do Tribunal Superior Eleitoral como representante dos juristas, e na qual se pleiteia que a Corte Superior Eleitoral aplique o mesmo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal em relação ao fundo partidário (ADI 5617) e determine que ao menos 30% do montante integrante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha sejam destinados às candidaturas femininas.

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A Associação Brasileira de Advogadas (ABRA), ciente de que tal julgamento pode revelar verdadeiro ponto de inflexão no terrível histórico brasileiro de sub-representação feminina na política, enviou arrazoado ao E. Tribunal Superior Eleitoral em que aderiu, integralmente, aos termos em que posta referida consulta, precisamente por entender que a promoção da igualdade de gênero pressupõe, necessariamente, o rompimento das barreiras institucionais, normativas e fáticas que dificultam o ingresso feminino em mandatos eletivos.

A inglesa Mary Wollstonecraft, defensora da igualdade nas relações sociais e uma das pioneiras no movimento dos direitos das mulheres, em seu escrito A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects, de 1792, já consignara que é de justiça, não caridade, que o mundo precisa ("It is Justice, not charity, that is wanting in the world"). [1]

E é imperativo de justiça que as estruturas práticas e normativas que cristalizam uma realidade de alijamento das mulheres dos espaços políticos sejam derruídas, sobretudo num contexto em que o que se discute, apenas, é a forma como devem ser utilizadas verbas de natureza pública, e não privada. Dados internacionais comprovam a realidade de flagrante assimetria de gênero em posições de liderança nas instituições políticas legislativas e executivas globais.

Segundo pesquisa realizada pela ONU Mulheres, em parceria com a União Interparlamentar (UIP), em 2017, a média mundial de mulheres em parlamentos é de apenas 23% (vinte e três por cento). [2] Em relação à participação feminina no Executivo, a pesquisa constatou a porcentagem de 7,5% (11/152) a ocuparem cargos de chefes de Estado e de 5,7% (11/193) a exercerem a função de chefes de governo. Com apenas uma Ministra à época da pesquisa (2017), o Brasil ficou na vergonhosa 167ª posição do ranking mundial de participação feminina em cargos ministeriais do Executivo, que analisou 174 países.

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Em relação ao ranking da participação das mulheres no Congresso, o Brasil ocupou a modesta 154ª posição, com apenas 55 das 513 cadeiras da Câmara ocupadas por mulheres (10,7%), e 12 dos 81 assentos do Senado preenchidos por representantes femininas (14,8%).

A média brasileira é, portanto, inferior à média regional africana (23,8%), asiática (19,6%) e, até mesmo, dos Estados Árabes (18,9%). A participação das mulheres no Congresso brasileiro também é consideravelmente inferior à média das Américas (28,3%) e à média global (23,4%).

O "gender gap" experimentado pelo Brasil precisa ser superado!

Ao comentar sobre os dados da pesquisa e identificando alguns dos desafios que as mulheres enfrentam ao concorrer a um cargo eletivo, a Diretora-Executiva da ONU Mulheres, Sra. Phumzile Mlambo-Ngcuka, ressaltou que as "campanhas políticas são caras" e que "os partidos políticos são dominados predominantemente por homens, de forma que quando não há alguma medida positiva em vigor, as mulheres tendem a não se sustentar no meio".[3]

Vera Lúcia Carapeto Raposo, da Universidade de Coimbra, relembra que "múltiplas barreiras impedem as mulheres de participar na vida política tão ativamente como seria desejável e legítimo à luz de uma lógica de justiça".[4] Dentre essas barreiras, ressalta que os partidos receiam apostar nas mulheres, posto que dificilmente conquistem muitos votos no eleitorado (em função do preconceito de gênero na sociedade).

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O entrave na obtenção de recursos para suas campanhas é, portanto, um dos principais fatores subjacentes à exclusão das mulheres dos mandatos político eletivos. A exígua presença feminina no Congresso brasileiro (10,7% na Câmara e 14,8% no Senado) é um reflexo sólido desse obstáculo. Afinal, se uma candidatura não é divulgada com uma campanha eleitoral eficiente, os eleitores sequer chegarão a conhecê-la. Não basta cumprir cotas com percentuais mínimos para candidatas de cada gênero, deve-se verdadeiramente garantir condições gerais de igualdade material na disputa pelo voto! Ao longo dos últimos anos, muitos países passaram a adotar o regime de cotas de gênero em suas legislações, prevendo verdadeiramente uma reserva de cadeiras no Parlamento para cada gênero, com o alcance, em alguns casos, da paridade, tal como ocorre na Argentina[5]

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Tal iniciativa não foi adotada pelo Brasil!

No sistema eleitoral brasileiro, não há reservas de vagas para cada gênero, mas apenas a exigência de um percentual mínimo de 30% de candidatura de um dos sexos. Tais candidatas, no entanto, lançadas exclusivamente com o propósito de viabilizarem o alcance do percentual mínimo, recebem pouco ou nenhum apoio partidário, o que faz com que suas candidaturas sequer cheguem ao conhecimento da população. Tudo isso, é bom que se diga, sem que se mencione o lamentável fenômeno da candidatura laranja.

Segundo levantamento realizado pelo E. Tribunal Superior Eleitoral, no ano de 2016, 14.417 das 158.453 candidaturas femininas não obtiveram nenhum voto sequer nas eleições.[6] Tudo a revelar o lançamento de candidatas apenas no "plano formal", sem nenhuma viabilidade concreta de real conquista de espaços de poder.

Ante o atual cenário brasileiro, não basta a previsão legal estabelecendo o preenchimento mínimo de 30% das candidaturas às mulheres. É necessário assegurar a participação política em condições de igualdade, que se traduz em fornecer condições básicas para que as campanhas eleitorais das mulheres realmente possam existir; ou seja, há a necessidade de efetivação material do direito político feminino no Brasil.

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Em razão da proibição das doações eleitorais provenientes de pessoas jurídicas, os recursos provenientes do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas são, atualmente, essenciais para o custeio e financiamento das campanhas eleitorais de candidatos. Sendo assim, forçoso estender o entendimento da Suprema Corte pertinente ao fundo partidário (ADI 5617) também a essa fonte de financiamento público. A distribuição dos recursos públicos destinados às campanhas eleitorais deve respeitar o patamar mínimo de 30%, sob pena de quebra do princípio da igualdade. A matemática é simples: se o mínimo de 30% das vagas devem ser destinadas a cada gênero - ou, melhor, às mulheres - o mínimo de 30% dos recursos do Fundo Eleitoral também deve ser destinado às candidaturas das mulheres.

Como se sabe, trata-se de fundo constituído por dotações orçamentárias da União, o que justifica ainda mais que seu uso seja distribuído de forma a garantir a plena efetividade do mandamento constitucional da igualdade, mediante a inaceitável situação de gap de gênero que insiste em se perpetuar no contexto da política brasileira.

*Meire Lúcia Gomes Monteiro Mota Coelho, presidente da Associação Brasileira das Advogadas (ABRA)

*Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, advogada, diretora do Observatório de Gênero nas eleições 2018 da ABRA

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