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Advogados da Lava Jato criticam súmulas que abrem caminho para denúncia anônima e multiplicação dos grampos

Defensores de alvos da Lava Jato se insurgem contra verbetes do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e alertam para 'movimento punitivo que despreza as garantias individuais'

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Por Fabio Fabrini , de Brasília e e Fausto Macedo
Atualização:

TRF4. Foto: Sylvio Sirangelo/Estadão

Defensores de alguns dos principais investigados na Operação Lava Jato criticam duas súmulas aprovadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) - uma súmula autoriza abertura de investigação com base em denúncia anônima, desde que amparada em 'outro indício', e a outra permite a renovação sucessiva de grampos telefônicos.

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Advogados, juristas e penalistas sustentam que as decisões da Corte federal instalada em Porto Alegre ferem a legislação vigente e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).

O TRF-4 tem jurisdição no Paraná, base da Operação Lava Jato. É o tribunal que julga atos ou questionamentos ao juiz Sérgio Moro, símbolo da maior investigação já realizada no País contra a corrupção.

Os defensores de alvos da Lava Jato alegam que as duas súmulas do TRF-4 dão margem a contestações formais na Justiça.

Uma das súmulas, a 129, diz ser "lícita a sucessiva renovação da interceptação telefônica, enquanto persistir sua necessidade para a investigação". A questão é controversa e suscita discussões no meio jurídico há bastante tempo.

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A Lei 9.296/96, que disciplina dispositivos constitucionais, determina que a escuta "não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova". Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e decisões de tribunais Brasil afora, no entanto, admitem o emprego desse instrumento de investigação por mais tempo, desde que essenciais para desvendar os crimes em apuração.

Criminalista Antônio Claudio Mariz de Oliveira. Foto: KEINY ANDRADE/ESTADÃO

O advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveira avalia que as duas súmulas do TRF4 'além de não apresentarem caráter vinculante são de duvidosa validade quanto ao seu conteúdo, pois representam mais um movimento punitivo que despreza as garantias individuais'.

Veterano criminalista com atuação destacada nos tribunais superiores e crítico contumaz das violações aos direitos dos acusados, Mariz atuou na Operação Lava Jato como defensor de um ex-executivo do escalão principal da empreiteira Camargo Corrêa.

"A súmula que trata da denúncia anônima está contrariando orientação pacífica dos nossos tribunais no sentido de que denúncia anônima é um nada jurídico", afirma Mariz. "A complementação do outro indício não apaga a ilegalidade da denúncia anônima pois fica num campo meramente subjetivo de avaliação do que é indício e da sua maior ou menor importância."

"Essa chamada súmula é mais um fator de instabilidade e de insegurança jurídica", afirma o criminalista. Sobre a súmula que abre caminho para renovação sucessiva dos grampos telefônicos, Mariz é taxativo. "A segunda súmula vem na mesma linha. Pois deixa o cidadão que tem a sua comunicação interceptada à mercê de uma decisão amparada apenas em informações subjetivas. A questão da necessidade pode ser mera alegação, sem nenhuma sustentação fática."

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O advogado assinala que as duas súmulas do TRF4, 'embora editadas por desembargadores da mais alta qualidade não têm nenhum valor vinculante'.

"O conceito de súmula sempre foi aquele referente a reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e tais decisões consolidadas por toda a Corte'.

"Mesmo tais súmulas, se não tiverem o caráter vinculante, não obrigam os magistrados a seguirem-nas", considera Mariz.

José Roberto Batochio. Foto: Sergio Dutti/AE

Para o criminalista José Roberto Batochio, que representa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato, além dos ex-ministros Guido Mantega (Fazenda) e Antonio Palocci (Fazenda e Casa Civil), o TRF-4 está interpretando a lei "contra a letra da lei" ao prever as prorrogações sucessivas.

"A lei diz que são 15 dias, prorrogáveis por mais 15. Então, porque ir além dela?", questiona. "Quem legisla sobre direito processual penal no Brasil ainda é o Congresso. E me parece que ( a súmula) vai contra o entendimento majoritário que se faz no STF", comenta.

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Pedro Ivo Velloso. Foto: Reprodução

O advogado Pedro Ivo Velloso, um dos principais responsáveis pela defesa do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), diz que, além de "absolutamente ilegal", a súmula dos "grampos" é contrária aos entendimentos firmados pela Corte.

"A jurisprudência atual do Supremo é no sentido de que a renovação só pode acontecer se houver complexidade nos fatos investigados e se o pedido for baseado em elementos concretos novos, colhidos no período anterior (da interceptação telefônica)", afirma.

Ele explica que o STF discutirá essa questão em breve e a decisão terá repercussão geral, ou seja, terá de ser aplicada a situações idênticas por tribunais inferiores. Trata-se de um recurso extraordinário em processo que avalia crimes de descaminho, evasão de divisas e formação de quadrilha, supostamente praticados por empresários do grupo Sundown, fabricante de bicicletas.

O "caso Sundown" teve dois anos de interceptações telefônicas. O juiz que conduziu o processo é Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato em Curitiba. O STF vai debater se o limite para escutas é de 30 dias ou se cabe, se necessário, esticá-lo. "O mais prudente seria (o TRF-4) aguardar o julgamento do recurso extraordinário desse caso Sundown", avalia Velloso.

Em outra súmula, o tribunal da 4ª Região entendeu ser "válida a instauração de procedimento investigatório com base em denúncia anônima, quando amparada por outro indício". Trata-se de assunto igualmente polêmico. Em 2011, por exemplo, uma das principais operações de corrupção no Brasil, que envolvia políticos e grandes empreiteiros, foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o argumento de que juízes não podem permitir a quebra de sigilos de qualquer espécie com base exclusiva em "denúncias anônimas". Na época, a Polícia Federal foi autorizada a acessar bancos de dados de empresas telefônicas, o que forneceu provas contundentes ao caso.

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Velloso alega que, embora não seja errada, a súmula é muito genérica ao não caracterizar o que seria um indício suficiente para a abertura de uma investigação. Ele diz que denúncias anônimas devem servir de ponto de partida para que se busquem mais elementos de prova. Só depois disso, confirmadas as acusações iniciais, deve-se instaurar inquérito e, eventualmente, deferir medidas invasivas, como interceptações telefônicas e quebras de sigilo bancário e fiscal.

"Não pode ser só o indício a justificar, tem de haver uma investigação (prévia) para confirmar a denúncia. Quando o denunciante não se expõe, é necessário ter muito mais reserva. Senão, o risco é de instrumentalização da atividade policial por interesses escusos", comenta. O advogado exemplifica: "Sou de um partido politico, você é de outro. Quero te prejudicar e faço uma denúncia anônima. Instaura-se um inquérito, e aí você vai estar estigmatizado, pode haver alguma medida invasiva contra você".

Batochio alega que a súmula dá margem a um sentimento de "absoluta insegurança no corpo social". "Qualquer inimigo pode denunciar o mais probo de todos os cidadãos, por razões inconfessáveis. Essa é uma prática muito cediça nas ditaduras. Sabemos que no século passado regimes autoritários usavam a denúncia anônima largamente, como aconteceu na Europa na década de 1930. Não acho que seja uma contribuição civilizada à jurisprudência brasileira", observa.

O advogado afirma que o texto é muito vago ao citar a necessidade de um "outro indício" a basear o procedimento de investigação. "Abre-se espaço para alguém, por exemplo, denunciar um membro do Judiciário de desonestidade anonimamente. Quem é que vai avaliar quando esse indício é idôneo ou não?"

Roberto Podval. Foto: Reprodução

O criminalista Roberto Podval apontou para 'um grande retrocesso' e alertou para o que chamou de 'país policialesco'.

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"As sucessivas renovações do grampo contrariam a própria legislação. E as denúncias anônimas vão criar uma situação de acusações desenfreadas e, muitas vezes, com interesses pouco louváveis. Caminhamos para um país ainda mais policialesco, ninguém ganha com isso."

Fausto de Sanctis. Foto: JB Neto/AE

Já o desembargador Fausto Martin de Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF3/São Paulo e Mato Grosso do Sul), considera que 'a denúncia anônima é estimulada pelas Convenções da ONU de combate ao crime organizado e à corrupção'.

"Ela é útil desde que complementada com informações relevantes que confirmam seus elementos", afirma. "A súmula (do TRF4) nada mais expressou do que a importância deste meio limiar de prova como, aliás, já referendou o próprio Supremo Tribunal Federal em vários casos."

De Sanctis se notabilizou em 2008, quando deflagrou a Operação Satiagraha, e, em 2009, quando abriu a Operação Castelo de Areia - esta uma investigação envolvendo a empreiteira Camargo Corrêa. As duas missões da Polícia Federal foram anuladas por ordem dos tribunais superiores, Castelo de Areia por causa de denúncia anônima, que deu origem ao inquérito.

"Sempre se deve ter em mente que a utilização da denúncia anônima deve estar atrelada à probabilidade da existência de uma infração penal, de sua autoria, devendo haver confirmação com demais elementos ou indícios", pontua o desembargador.

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Sobre a súmula que trata da renovação sucessiva do grampo, De Sanctis cita decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal. "O TRF4 baseado em seus precedentes nada mais fez do que consolidar a jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, que tem considerado lícita a prorrogação do prazo legal de autorização para interceptação telefônica, ainda que de modo sucessivo, quando o fato seja complexo e exija investigação diferenciada e contínua."

"De fato, a limitação no tempo dessa prova significaria desconsiderar o quão difícil é a apuração do crime organizado que demanda análise segura das informações, em sua maioria apenas confirmadas com o passar do tempo. As prorrogações visam assegurar direitos de todas as pessoas mencionadas nos diálogos a fim de bem separar o joio do trigo e evitar conclusões infundadas. Claro que prorrogações devem ser devidamente fundamentadas."

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