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A jogatina como serviço público no Brasil

Por Kleber Cabral
Atualização:
 Foto: Divulgação

O Senado, com o apoio público do governo, está prestes a votar o PLS 186/2014, que busca legalizar e regulamentar a exploração dos jogos de azar, proibidos no Brasil desde 1946. Incluída na Agenda Brasil, pauta apresentada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, a proposta, se aprovada, acrescentará mais lodo à vergonha nacional: a lavagem de dinheiro e a sonegação de impostos.

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Como é de hábito, grupos de interesse tiram da cartola números, estimativas e propósitos bem-intencionados para justificar a aprovação de projetos, que, numa análise menos binária, não se sustentam. Seus defensores alegam que a legalização incentivará a retomada do crescimento econômico do país e trará arrecadação adicional de R$ 29 bilhões nos primeiros três anos.

Tal afirmação não se ancora em nenhum estudo sério. Parece apenas uma tentativa de seduzir a opinião pública e os parlamentares diante da aguda crise fiscal que enfrentamos.

Alternativa mais republicana e palpável seria investir no combate à sonegação que atinge no âmbito federal o montante estimado de R$ 372 bilhões por ano. Conduzido com afinco, tendo a Receita Federal à frente, poder-se-ia, numa projeção conservadora, reduzir, ao longo de três anos, esse farra fiscal em 25%. Em números: um acréscimo de mais de R$ 90 bilhões na arrecadação de tributos.

Para se aprovar um projeto, viciado na origem, não há limites para a criatividade semântica. No dia 11 de agosto, foi apresentado o relatório do Senador Fernando Bezerra (PSB-PE), com modificações significativas na proposta original, com destaque para a afrontosa definição (art. 9º) de que a exploração de jogos de azar "constitui serviço público".

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Segundo a professora de Direito da Universidade de São Paulo, Maria Sylvia Zanella de Pietro, serviços públicos são atividades que a lei atribui ao Estado para que as necessidades coletivas sejam satisfeitas. Será que promover locais e formas para o cidadão dispender seus recursos em jogos de azar tornou-se uma necessidade coletiva? Ao que parece, essa foi a justificativa encontrada para criar a possibilidade de concessão desse "serviço público", mediante licitação, atribuindo à Caixa Econômica Federal o papel de agente operador.

Outra preocupante modificação em relação ao projeto original é a retirada do número de cassinos e bingos a serem permitidos no país. O relatório não traz qualquer limitação de quantidade ou região geográfica. Devemos estar preparados, se a proposta for aprovada, para acordar em um país com um bingo em cada esquina.

A terceira modificação que merece destaque é a preocupação com a cotidiana e tradicional relação entre a exploração dos jogos de azar e atividades criminosas como lavagem de dinheiro, corrupção, sonegação e tráfico de drogas, que utilizam tais estruturas. Nesse sentido, o projeto prevê a obrigação de que todas as pessoas que adentrarem nos estabelecimentos sejam identificadas, e que transações acima de 2 mil reais sejam realizadas exclusivamente via transferência bancária. Entretanto, essas medidas não surtirão o efeito pretendido, pois serão sempre suscetíveis a fraudes, se consideramos que o órgão que poderia exercer a fiscalização para evitá-las, a Receita Federal, não possui estrutura para tanto.

Apesar de a lei afirmar que há no país 20.500 auditores da Receita Federal, só existem atualmente 10.500, a quem cabe um desafio gigantesco: combater uma sonegação anual expressiva, fiscalizar mais de 15 mil quilômetros de fronteiras terrestres e mais de um bilhão de toneladas de cargas que passam em nossos portos e aeroportos. Isso sem contar que a Receita Federal recebe por ano dezenas de milhões de declarações de pessoas físicas e jurídicas, para serem verificadas.

Além dos jogos de azar, caracterizados por muitas pessoas alocando pequenas quantias de forma concentrada, muitas vezes em espécie, dando origem a prêmios substanciais, os estabelecimentos poderão explorar atividades de hotelaria, restaurante, centro de convenções, apresentações artísticas, o que dá a dimensão da dificuldade de se fiscalizar o conjunto de tais operações.

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No tocante à tributação, o relatório prevê incidência de 20% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, enquanto a alíquota geral é de 9%. Vale ressaltar que essa alíquota incide sobre o lucro, e que o estabelecimento poderá explorar outras atividades, contratar empresas terceirizadas, criar despesas, e dessa forma 'transferir' o lucro do jogo para outras empresas do grupo ou parceiros, que não sofrem essa tributação majorada.

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O imposto de renda retido na fonte previsto é de 30% sobre o prêmio líquido: diferença entre o que o apostador ganhou em prêmios e gastou nas apostas. Essa alíquota poderia ser progressiva, de 30% a 50%, para inibir ou ao menos aumentar o custo da operação de lavagem de dinheiro.

Apesar dos avanços tecnológicos da fiscalização, não é difícil concluir que a Receita Federal não terá condições estruturais para fiscalizar milhares de casas de bingo e talvez centenas de cassinos país afora. Não faz sentido um país em desenvolvimento, com tanta demanda de fiscalização, desviar recursos humanos e financeiros para o controle de uma atividade de alto risco, propenso a ser utilizado como uma grande lavanderia.

* Kleber Cabral, presidente da Unafisco - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal

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