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A guerra do Ministério Público de São Paulo em defesa dos idosos

Por Maria Cecília Alfieri Nacle
Atualização:
Maria Cecília Alfieri Nacl. Foto: Divulgação

O Ministério Público do Estado de São Paulo vem travando uma verdadeira guerra contra entidades que aliciam idosos por meio de publicidade e ofertas enganosas, prometendo resultado concreto em ações judiciais duvidosas. Após constatarem que foram induzidos em erro, não conseguem se desfiliar das associações, com ameaças de inclusão de seus nomes nos cadastros de pessoas inadimplentes.

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A abordagem dos idosos consiste em um marketing agressivo, com o envio de correspondências sob a rubrica "URGENTE" e contendo um prazo de 48h para comparecimento na sede da entidade, sob pena de a pessoa perder o direito à revisão do benefício a que faria jus.

Não fosse o fato de que as missivas são remetidas a um público muito específico (idosos, aposentados, pensionistas, com baixa instrução e reduzido nível socioeconômico), a conduta das associações seria inócua, já que parece um tanto óbvio o engodo utilizado. Até porque, se existe algo totalmente incerto - posto que passível de diversas interpretações - é a demanda judicial.

Intriga-nos também a maneira com que os dados são obtidos e selecionados de forma tão certeira e criteriosa, atingindo um grupo muito particularizado, havendo forte suspeita de vazamento de informações contidas em bancos sigilosos, como no caso do INSS e da Caixa Econômica Federal, acessíveis somente a tais entidades, ao Judiciário e ao próprio titular de tais dados.

Os consumidores para os quais são remetidas as cartas a que nos referimos acabam seduzidos pelo conteúdo enviado e pela abordagem dos atendentes previamente treinados, quando, então, sem ler ou se atentar para o que estão assinando, na verdade firmam um "Termo de Adesão de Associado", sem possibilidade de desligamento (salvo se pagas todas as "pendências").

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Aproveitando-se da boa-fé, da fragilidade, da vulnerabilidade do consumidor, as entidades maliciosamente os abduzem a integrar os seus quadros - sequer tendo conhecimento de que estão se filiando à entidade associativa -, sob o pretexto de que farão jus aos serviços jurídicos cujo direito veiculado em eventual ação (quando ela é efetivamente ajuizada) é dado como certo.

Ignora-se, com isso, a observância dos princípios mais básicos, tais como: o direito a receber informação clara, adequada e precisa sobre um produto ou serviço; a ética no trato social e a boa-fé nas relações de consumo; a transparência e a lealdade contratuais; o respeito à condição hipervulnerável do contratante; o direito constitucional de filiação ou desfiliação a uma entidade[1], além de outros preceitos plenamente aplicáveis à situação em comento.

Assim, tais consumidores, considerada a sua suscetibilidade, acabam por comparecer com a máxima brevidade na sede das associações, com a falsa esperança de obterem uma renda mensal mais elevada, acreditando firmemente na sedutora (e enganosa) publicidade.

Outorgam procurações a advogados - altamente engajados no esquema engendrado -, fornecem seu número de cartão de crédito, e assinam um termo por meio do qual estão, na realidade, se associando. E o que é pior: com renovação automática e sem possibilidade de se desligar, como mencionado.

Em verdade, tais entidades, que afirmam não deter fins lucrativos, configuram autênticas organizações criadas apenas para atrair aposentados e pensionistas - em sua maioria composta por idosos de baixa instrução e com reduzido poder aquisitivo -, as quais, abusando de tais peculiaridades, passam a cobrar uma elevada anuidade, sem nenhum benefício concreto ou contrapartida imediata[2].

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Portanto, muito diferente de uma genuína associação, trata-se, à evidência, de uma verdadeira empresa, criada sob o manto associativo, com nítido objetivo de lucro fácil, em prejuízo de pessoas hipossuficientes e até mesmo do erário, se considerarmos as prerrogativas fiscais de que gozam tais pessoas jurídicas.

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O engodo é tão cristalino que nos termos de adesão de uma das investigadas na Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital consta o direito a desfrutar de um clube com arvorismo e tirolesa (!), o que seria risível se não fosse tão abusivo, se considerarmos o público alvo das cartas enviadas.

Nossa legislação é expressa ao qualificar como enganosa "qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor (...)" - artigo 37, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor.

Nota-se, pois, que a publicidade veiculada é enganosa assim como é também a oferta, principalmente por transmitir informações inverídicas, capazes de induzir em erro os consumidores. Isso porque os idosos acabam se associando às entidades sem ter exato conhecimento do que estão assinando, com a crença de que estão contratando um serviço jurídico com promessa de ganho certo.

Ademais, fica evidente que as associações se prevalecem da fraqueza ou ignorância do consumidor idoso para impingir-lhe seus serviços profissionais, obrigando-o, contra sua vontade, a permanecer associado, arcando com o pagamento de valor a título de mensalidade e/ou anuidade, o que representa exigência de vantagem excessiva, considerada prática abusiva pelo art. 39, V, do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:

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"É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva".

Em uma das representações existentes na Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital o abuso perpetrado chama a atenção: a consumidora lesada refere ser portadora de deficiência visual (!). Em várias delas, também é possível constatar a subscrição do termo de adesão por pessoas que mal conseguem assinar o próprio nome. Patente, pois, a ilicitude da conduta praticada.

Vale ressaltar, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor prevê em seu art. 6º, inciso IV, como um dos seus direitos básicos "a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços".

Nos casos investigados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo - que recebe cerca de quinze representações por dia versando sobre casos idênticos - é possível identificar um grande número de cartas de cobrança contendo ameaças de inclusão nos cadastros de inadimplentes. Desse modo, é evidente a prática de atividades ilícitas violadoras à legislação consumerista.

Interessante mencionar, também, que as entidades suspeitas, notificadas a se manifestar nas investigações deflagradas, jamais apresentam as famigeradas cartas que contêm as falsas promessas e os prazos de "48h", com expressões do tipo "seu prazo está se esgotando!". Ao revés, muitos consumidores relatam que tão logo comparecem nas associações, os funcionários imediatamente se apossam das correspondências, distraindo-os para que não percebam a ocultação.

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Com efeito, tais missivas só chegam ao conhecimento do Ministério Público por meio dos próprios consumidores lesados - que acabam de alguma forma permanecendo com as cartas -, cujo número estimado é muito maior, já que vários deles se sentem envergonhados após descobrirem terem sido enganados e, por isso, resolvem não acionar nenhum órgão de proteção.

Também é "curiosa" a total falta de disponibilidade das entidades em firmar um acordo com a Promotoria do Consumidor, a fim de cessar as práticas abusivas. Ao contrário, em todas as reuniões realizadas, há sempre um discurso pronto dos advogados no sentido de que a relação é associativa e, portanto, nela não incidiria o Código de Defesa do Consumidor.

Assim, todo o expediente utilizado por este tipo de associação é milimetricamente premeditado, contando com a participação de profissionais da área jurídica para dar aspectos de legalidade à entidade e, assim, se blindar de eventual responsabilidade.

Aliás, as diversas associações investigadas pelo Ministério Público da Capital possuem expedientes idênticos, como: mesmo corpo de advogados para defendê-las; mesmos procuradores que subscrevem seus estatutos; mesmos escritórios de advocacia como outorgados em procurações ad judicia (para o ajuizamento de ações em nome dos consumidores); defesas sob os mesmos argumentos, dentre outras práticas muito similares.

Tão escancarada a conduta das entidades que, um dos réus na ação civil pública ajuizada pela Promotoria do Consumidor é justamente o advogado de outras entidades rés em uma outra demanda coletiva ajuizada pela Promotoria de Justiça do Idoso, que versa sobre as mesmas práticas ilícitas.

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Fato é que, assim agindo, as associações continuam a perpetrar as mesmas práticas lesivas, escudando-se na personalidade jurídica criada de forma dissimulada, de maneira a prejudicar um sem número de idosos, majoritariamente pessoas humildes e sem instrução suficiente para não cair no engodo.

É por isso que, ao se judicializar a questão por meio de ação civil pública - instrumento essencial à função institucional do Ministério Público[3] - ganha especial importância a formulação de pedidos liminares, denominados pelo novo Código de Processo Civil como "tutelas provisória de urgência". Isso porque, se os consumidores tiverem que aguardar o desfecho da ação coletiva, muito provavelmente não mais haverá ativos suficientes para responder de forma satisfativa às obrigações eventualmente impostas em uma sentença, mormente a indenização dos idosos lesados.

Portanto, de nada adianta promover uma ação judicial contra as entidades que aliciam os idosos se, ao final, na hipótese de concessão dos pedidos formulados pelo Ministério Público, não restarem mais bens em nome da pessoa jurídica ou mesmo das pessoas físicas que atuam em nome daquela, de forma a ressarcir as vítimas das práticas abusivas.

A par disso, tem sido formulado, logo de início (ao se ajuizar a ação), pedido de natureza cautelar consistente na indisponibilidade de bens tanto da associação, quanto de seus dirigentes, bem como de outros que participem do elaborado esquema de atuação, tudo a fim de se garantir a recomposição do dano ocasionado a um grupo específico de consumidores.

De forma concomitante, outros pedidos ganham especial relevo na fase inicial do processo: a suspensão das atividades da entidade, bem como a paralização de todas as publicidades abusivas (em especial as ofertas realizadas por meio de cartas). É que, na hipótese de se aguardar o deslinde da ação, considerando a morosidade do Judiciário, muito provavelmente a associação continuaria a lesar mais e mais vítimas, ocasionando efeitos ainda mais deletérios.

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Atualmente, temos vigentes duas liminares concedidas por duas Varas Cíveis do Fórum Central da Capital, acolhendo em parte os pedidos liminares formulados pelas Promotorias de Justiça do Idoso e do Consumidor, suspendendo-se o envio de publicidades enganosas pelas entidades rés.

Contudo, é certo que há muito mais a se fazer, razão pela qual se tem recorrido ao Tribunal de Justiça do Estado para o fim de ampliar a gama de providências possíveis, como no caso de se inadmitir novos sócios, se decretar a indisponibilidade de bens, suspender as cobranças judiciais e extrajudiciais, dentre outras, evidenciando-se, infelizmente, ainda uma certa reticência por parte da 1ª instância de julgamento.

Enfim, por todos os aspectos analisados, espera-se que a atuação do Ministério Público - corroborada por firmes e amplas decisões judiciais - possa auxiliar a combater a ramificação dessas entidades que se transvestem de "associações", com a finalidade de que menos pessoas sejam ludibriadas, sobretudos os idosos, pelas práticas abusivas mencionadas.

* Maria Cecília Alfieri Nacle, Promotora de Justiça designada na 3ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital; Pós Graduada em Direito Público pela Escola Paulista de Direito

[1] Artigo 5º, inciso XX, da Constituição Federal: ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. [2] A anuidade normalmente gira em torno de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00. [3] Art. 129 da Constituição Federal: São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

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