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Um brinde à tecnocracia

Na noite do dia 28 de março chegou ao Brasil uma rara notícia: em meio à grave crise institucional por que passa, o País viu um de seus órgãos, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), ser considerado a melhor agência de defesa da concorrência de 2016 nas Américas pela revista britânica Global Competition Review. O Cade desbancou órgãos de prestígio como a Federal Trade Commission e o Department of Justice dos EUA, e o Competition Bureau do Canada. Na mesma noite, um dos guias do Cade ganhou o prêmio de melhor iniciativa de "Soft Law" do ano da revista francesa Concurrences.

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Por Marcos Paulo Veríssimo
Atualização:

Novidade? Não exatamente. Essa é a terceira vez que o Cade recebe o prêmio de agência do ano nas Américas pela Global Competition Review. Além disso, no ranking das melhores autoridades mundiais de defesa da concorrência organizado pela mesma revista, o Cade aparece há alguns anos em terceiro lugar, empatado com a Austrália e o Reino Unido, à frente de países como Canadá, Espanha e Noruega, e atrás apenas dos EUA, França, Alemanha, Japão, Coréia e União Europeia. Meses atrás, por ocasião da última reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, o Cade foi elogiado rasgadamente ao Ministro da Fazenda por uma empresa estrangeira, que o considerou uma das autoridades de defesa da concorrência mais eficientes do mundo.

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Nesse oceano de debilidade institucional que ainda é o Brasil do século 21, qual terá sido a mágica que transformou o Cade em uma ilha de excelência?

Nos últimos anos, tive o privilégio de acompanhar o Cade desde várias perspectivas (de fora, como advogado e acadêmico, e de dentro, como conselheiro) e posso testemunhar que não há mágica alguma. A resposta, simples, é que o Cade foi um dos pouquíssimos órgãos do Poder Executivo que conseguiu se manter, ao longo dos últimos vinte e poucos anos, completamente afastado da racionalidade político-partidária que frequentemente marca as coisas do governo, incluindo não só o aparelhamento ideológico, mas também o loteamento de cargos. Com isso, o Cade consolidou-se como um órgão técnico, de Estado, caracterizado por aquela racionalidade "técnico-burocrática" que Weber dizia ser uma das condições sine qua non para o desenvolvimento e para a consolidação de um direito "racional".

Essa racionalidade técnico-burocrática é caracterizada pela crença de que certos órgãos de Estado não devem envolver-se nos grandes conflitos políticos do momento, nas barganhas ideológicas e de poder que marcam a vida (sempre instável e efêmera) dos governos, mas ao contrário devem guiar sua ação pela aplicação racional da regulação estatal a um certo campo de atividade que é de sua competência. Mas como se faz para garantir que isso aconteça na prática? Do ponto de vista institucional, dois pontos de partida são essenciais: autonomia e independência em relação às instâncias "políticas", de "governo" e do "mercado" (Presidência, Ministérios, Partidos, Empresas, etc.), e excelência técnica.

Por várias razões, o Cade acabou conseguindo cercar-se, no mínimo desde sua reformulação no início dos anos 1990, dessas duas raríssimas qualidades.

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Nesse período, foram nomeadas para seu órgão diretivo, por quatro presidentes diferentes, quase cinquenta pessoas. Entre elas, 90% eram mestres e doutores, 70% eram professores de direito ou economia em importantes universidades, e raríssimas haviam tido ou mesmo tiveram, depois do exercício de seus cargos, qualquer tipo de atuação político-partidária relevante. Foram pessoas que exerceram seus mandatos e, ao fim deles, seguiram de volta para suas vidas profissionais e acadêmicas assim como delas haviam partido, sem depender de governos, partidos ou empresas para tocarem suas carreiras adiante.

O mesmo se pode dizer, com ainda maior ênfase, do corpo técnico do Cade. Jovem, é quase totalmente formado por funcionários de carreira que vêm se dedicando há muitos anos ao direito e à economia da concorrência, muitos também portadores de títulos de mestre e doutor, e vários também professores. São pessoas extraordinariamente sérias e dedicadas ao que fazem, que trabalham até tarde e vibram a cada prêmio internacional conquistado (por uma dessas coincidências da vida, eu fui um dos advogados envolvidos no caso que gerou o elogio em Davos e posso dizer com conhecimento de causa: foram esses técnicos a razão exclusiva daquele elogio, tamanha a boa impressão que geraram nos advogados estrangeiros que também atuaram no processo; mostraram conhecimento técnico, perguntaram bem, cumpriram seu dever e atuaram exatamente como atuariam as autoridades de qualquer das principais agências antitruste dos EUA e Europa).

O segredo do sucesso do Cade é, portanto, simples de explicar, mas difícil de reproduzir: órgãos técnicos, voltados à aplicação da lei e da regulação estatal, são órgãos de Estado e não do Governo. Devem ser independentes. Devem ser guiados por critérios técnicos, não políticos. Devem ser compostos, de cima a baixo, por pessoas que tenham demonstrada excelência técnica e experiência em suas áreas de atuação, e que tenham uma reputação a zelar. Devem ser integrados por pessoas realmente independentes do governo, da política partidária e do mercado.

Parabéns, portanto, ao Cade que conquistou todas essas qualidades e agora colhe frutos. Mas parabéns também aos diferentes governos dos últimos vinte anos, que souberam preservá-lo assim. Se no futuro pudermos exportar essa "tecnologia" para muitos outros órgãos do Executivo, vários outros prêmios e reconhecimentos internacionais virão para o país, quase naturalmente.

*Marcos Paulo Verissimo é Professor Doutor do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP. Foi Conselheiro do Cade entre 2009 e 2011 e é atualmente sócio do escritório Machado Meyer Advogados

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