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“Eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa.” (Guimarães Rosa)

Muito além do jardim

Pedalando sua bicicleta, a presidente tem a ilusória impressão de fazer movimentar o mundo.

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Por Carlos Melo
Atualização:

Em "Muito Além do Jardim", o ator britânico Peter Selles desempenha seu mais extraordinário papel, vivendo a estória de um personagem que passa toda a vida recluso a uma casa, cuidando de seu jardim; não tem existência social, nem política, sequer legal. Seu contato com o mundo se resume à TV, que assiste. Mais, tarde quando descoberto - em virtude da morte do patrão --, responde por meio de lugares-comuns e clichês que retirou da televisão. É, então, inadequadamente, confundido com um gênio.  O filme é triste, embora se trate de uma comédia; o alheamento do protagonista é revelador da solidão e também da ignorância de um mundo que carece de inteligência.

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Observando as imagens da presidente Dilma pedalando sua bicicleta ao redor do Palácio, foi inevitável lembrar de Peter Sellers, em "Muito Além do Jardim". A presidente parece igualmente só, isolada mesmo; sem identidade social e política. Está reclusa, não vai às ruas, mesmo a casamentos chiques não pode ir. Desistiu de aparecer na TV por conta do efeito de panelaços que sua imagem produz. Cercada por seguranças, resta-lhe pedalar sua bicicleta ao redor do Palácio, nos jardins da residência oficial.

Talvez, nem seja tanto assim o seu alheamento, mas a imagem tem força de uma revelação: Dilma sem ânimo para reagir, incapaz de enfrentar a plateia; pedalando a bike ilude-se na impressão de que faz o mundo rodar sob seus pés. Mas, na verdade, está só e imóvel. Como na poesia de Drummond, "a noite esfriou, o dia não veio (...) não veio a utopia e tudo acabou, e tudo fugiu e tudo mofou". E a identidade política murchou, e as vacas tossiram, e tudo parece se resumir a essadefensiva prisão política que tem na bicicleta contida aos jardins o símbolo de movimentos apenas ilusoriamente amplos, mas limitados na verdade.

Não se trata de discutir o justo, o certo ou o errado da situação; se, em resumo, os governos do PT fizeram mais bem ou mais mal ao país. Política nunca é justa. E, ademais, anjos decaídos são anjos mas também decaídos; anjos decaídos e ponto! Feita de versões, a história é a versão que mais emplacou e aquela que constará nos livros. A menos que consiga provar o contrário, a versão corrente hoje é muito ruim para o PT, Dilma e Lula, que vivem o pior momento de suas histórias: a presidente está só; o partido, atabalhoado, busca em desespero a coerência perdida. Ambos vivem a vertigem de um ônibus desgovernado -- até por isso a preferência pela bicicleta.

E Lula, é claro, tampouco está isento disso. Recentemente, revi o filme "Peões", de Eduardo Coutinho. É ao mesmo tempo emocionante e triste: Lula faz parte da história do Brasil, irremediavelmente. E já o faria mesmo sem a presidência da República. No documentário, emerge do depoimento de seus ex-companheiros como herói, sábio, deus. Traduz a luta dos humildes e também suas esperanças. O filme é de 2004. Mas, é triste perceber que aquele Lula é, como tudo na vida, datado. Aquele tempo, obviamente, também. Tudo mudou e os sonhos, se é que se realizaram, se realizaram apenas parcialmente - ainda que sonhos parciais não possam ser desprezados. A inclusão, de fato promovida, será sustentada  e sustentável?

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A cultura política do país não mudou: o mesmo patrimonialismo, a mesma sanha de poder - que faz os anjos decaírem.Sem mudanças estruturais, o ajuste fiscal chegou "impávido que nem Muhammed Ali", mas de modo algum "tranquilo e infalível como Bruce Lee".; é um remendo no pano roto que o PT só fez ampliar. Gostemos ou não, ao longo de mais de uma década, a direção do PT se rendeu aos "usos e costumes" da real politique. Muitos de seus quadros parecem ter feito tudo aquilo que um dia imaginaram que os adversários fizessem. Deu no que deu. Se é verdade que os adversários realmente faziam - e é plausível que o fizessem --, o mais condescendente comentário que se pode fazer a respeito do PT é que "malandro é malandro e mané é mané". Não tem jeito de ficar bem na foto.

É doloroso porque nisso tudo tem muita sente séria que não meteu a mão nos estrume, que foi de boa-fé, que deu seus melhores anos. Uns ideologizados, outros nem tanto.  Ambos militantes. Mas, a militância não basta. E hoje aquela parcela que não depende dos cofres públicos se afasta ou - alguns -- resiste com argumentos frágeis buscando retornar as bombas caídas no seu quintal, para o quintal da oposição. Não parece ser um bom raciocínio apenas admitir que a oposição, no poder, também é assim. Admitindo que fizeram o mesmo, são réus confessos. Só isso.

Voltando a Lula, o herói de antanho: o antigo metalúrgico e experiente político sabe que está numa enrascada. A massa de humildes sempre foi sua força e sua proteção; o tal e suposto "dispositivo popular" do PT, por muitos anos, foi sua blindagem. "O que fazer quando Lula colocar sua massa na rua?", perguntavam-se as tais das elites. Mas, depois de 12 de março de 2015, quando o "exército do Stédile" não foi às ruas - ou foram uns gatos pingados, muitos às custas de "quentinhas"--, se percebeu que também Lula começou a ficar só; um tigre banguela? Em tempo de Lava Jato, o pesadelo consiste em sentir a lâmina aproximar-se do pescoço, sem defesa.  DE volta à poesia de Drummond: essa "Minas não há mais"; a força mingou.  E agora, Luís?

Hoje, o apoio ao governo do PT resume-se a algo ao redor de parcos 10%, os congressos do partido estão esvaziados; prefeitos pedem que seus diretórios municipais os expulsem como forma de se desvencilharem da legenda; os primeiros ratos sentem o cheiro do naufrágio e se retiram. Neste contexto, Lula, o PT e Dilma sentem que precisam recuperar a massa e que necessitam de um discurso de esquerda e de abrigo social para a massa que, somente ela, poderá abriga-los. A força da massa na rua, forçando o recuo dos adversários, o pacto, a conciliação diante da tal "correlação de forças". Política clássica e manjada: saída pela esquerda.

Mas, como fazê-lo se, ao corrigir os erros do governo - ajustando também programas e políticas públicas --, retira-se direitos, corta-se recursos, escasseia o colchão de proteção social em que dormiram e sonharam pobres e militantes? Como sinais são um desastre em ano pré-eleitoral: cortar pensões e o seguro desemprego, reduzir verba para educação e saúde?!?!

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Como compensação restaria o surrado discurso ideológico que, defensivo, precisa pelo menos fingir que foi ao ataque. Demonstrar que também houve aperto aos "de cima": impostos sobre lucros e fortunas. Algo contra-produtivo, quando se quer recuperar credibilidade e investimentos, mas uma necessidade de quem precisa de, pelo menos, uma tangente retórica.

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O ajuste fiscal parece ser, então, tão inevitável quanto fatal. Inevitável para o governo, fatal para o PT. Se não se faz, a economia afunda - e com ela toda a sociedade; se o faz, a sociedade que referendou a experiência petista afunda primeiro. Claro, o ajuste pode trazer, lá na frente, a recuperação geral, a retomada do crescimento econômico e social. Mas, seu tempo político, lento e gradual, é uma tragédia para Lula e para o PT suas centenas de prefeitos e milhares de vereadores. No longo prazo, é possível que estejamos vivos, mas nessa fórmula o PT morrerá antes. A equação contrária consistiria na hipótese de que todos morramos para que o PT sobreviva e agonize por mais tempo.

Difícil dizer. Uma canção de Lenine, cantor o homônimo do mito de tantos petistas, afirma com precisão: "ninguém faz ideia do que vem lá". Ninguém faz. Só os charlatães arriscam palpite. Mas, há muitas variáveis sem controle e toda essa turbulência não encontra coordenação central para contê-la. O fato é que Lula, PT e Dilma estão numa cilada lógica: um ajuste tão inevitável quanto fatal.

Este parece ser o mundo além do jardim de Dilma, que no  entorno de seu palácio pedala as angústias remoendo erros ou regurgitando os sapos que tem engolido. Busca encontrar, na bike, o equilíbrio que parece ter-lhe faltado no exercício da presidência, na eleição e no pós eleitoral; procura o movimento sincronizado e constante que perdeu nas incontáveis trapalhadas que patrocinou nesse início de segundo mandato. Será isso mesmo, ou estará tão alheia quanto o personagem de Peter Sellers? Só a história dirá o que vem lá!

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

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