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Transformando a gestão pública brasileira e fortalecendo a democracia

A anedota do burocrata e seu cemitério

Odorico Paraguaçu, candidato a Prefeito da cidade de Sucupira, fez uma promessa de campanha: construir um cemitério. Com esse discurso, o mesmo foi eleito, contudo, um problema importunava a gestão de Odorico Paraguaçu: após a inauguração do cemitério, ninguém veio a óbito. Sabendo que uma boa gestão é composta por um discurso vinculado a resultados, Odorico passou a escolher meios aqui categorizados como "ilegais" que justificassem seu fim: inaugurar uma sepultura em Sucupira. Revisitar a literatura brasileira e, através da simbologia de Odorico Paraguaçu, descrita na obra "O Bem-Amado", traça-se um paralelo com a gestão pública contemporânea, sendo essa construída e gerida por pessoas que possuem, digamos, seus delírios burocráticos, na tentativa de qualificar e quantificar suas ações dentro da rede burocrática sem necessariamente se ajustar a contextos.

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Por Laura Angélia Moreira da Silva , cientista social , mestre em administração pública pela Fundação João Pinheiro e doutoranda da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Líder MLG com experiência nas áreas
Atualização:

Considerando somente a descrição inicial da personagem (não pretendo exaurir suas qualidades, ficando aqui somente com a alegoria que colabora com a reflexão) e a sua sede em "cortar a faixa" e "tirar a fotografia" inaugural do cemitério, de preferência com uma cova "cheia" e todas as suas tentativas para tal, Odorico Paraguaçu não nos parece, em um primeiro momento, um servidor público brasileiro como é comum de se descrever: um indivíduo acomodado e procrastinador, uma pessoa sem a proatividade e senso de urgência preconizados pelo mercado. Muito antes o contrário, a personagem precisa gerar resultados, independente das ferramentas para conquistá-lo.

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Se a capacidade de uma administração pública pode ser medida por meio da atuação do seu corpo político e de sua burocracia, questiona-se aqui até que ponto a manutenção de "Odoricos Paraguaçus" à frente das políticas públicas gera alta probabilidade de se conquistar um resultado esperado. Neste ponto, atrevo-me a dizer que, frente a fluidez dos usos dos mecanismos de gestão, como se as ferramentas gerassem resultados em si mesmas, o burocrata tende a criar e posteriormente conviver diariamente com o seu delírio burocrático, termo esse que utilizo para caracterizar aqueles burocratas que já se esqueceram dos reais motivos que os levaram a escolher determinada política pública, esqueceram as razões que os levaram a contratualizar determinados resultados, que não se preocupam com o significado da meta e sim com o seu cumprimento, puro e simples, como se os números sozinhos refletissem a efetividade. O único ponto importante para esses gestores é o fato da política pública, da promessa, do resultado fim ser positivo para si mesmos, não importando mais para quem, ou para o quê. Esse efeito perverso é visto em determinadas administrações públicas quando os ritos de resultado são mais importantes do que os esforços em si; os modelos de governança são replicados sem que se observe a qualidade dos mesmos; quando não se observa se de fato as pessoas certas estão se envolvendo na tomada de decisão e se estamos conduzindo a política pública para o efetivo atendimento da demanda.

É importante refletir se nós, servidores públicos, de fato estamos optando por ações públicas que não estão esvaziadas, afinal obter informação per si não significa a manutenção de uma política e nem seu resultado, bem como os instrumentos legais somados aos discursos são capazes de gerar "um cadáver que inaugurará cemitérios".É necessário revisitarmos nossas condutas sempre, evitando que essas se tornem um conjunto de boas intenções ou de cordialidades que não reflitam situações inesperadas e externalidades negativas, afinal contingências podem ocorrer, e mais do que isso: que não reflitam o cuidado com a coisa pública que todo servidor público deve ter.

Por fim cabe frisar que o cemitério em Sucupira foi inaugurado. Pelo próprio Odorico Paraguaçu.

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